O Estrangeiro de Albert Camus e a maldição da indeferença.

Kruppa
7 min readFeb 23, 2024

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“Perguntou-me, depois, se eu não estava interessado em uma mudança de vida. Respondi que nunca se muda de vida; que, em todo caso, todas se equivaliam, e que a minha, aqui, não me desagradava em absoluto”. (CAMUS, Albert. O estrangeiro)

Imagem da adaptação da obra em quadrinhos por Jacques Ferrandez

Eu sei que para algumas pessoas podem achar estranho, mas um dos meus momentos favoritos para ler um livro inteiro, em uma tacada só são viagens de ônibus, o trecho de Goiânia a São Paulo costuma consumir pelo menos 13 horas e, como tenho um pouco dificuldade de dormir, já se tornou costume ler alguma obra por inteiro nesse processo, em minha última viagem a selva de concreto, decidi finalmente ler “O Estrangeiro” de Camus, e assim o fiz.

Publicado em 1942, o Estrangeiro é o romance mais famoso de Camus, na história temos como protagonista Mersault, um homem que, em tempos modernos seria descrito como emocionalmente indisponível, Mersault é um homem que trata sua vida com completa indiferença, sejam suas relações de amizade, trabalho ou emocionais, Mersault vive apenas o momento, por exemplo, em uma determinado momento, Raymond, um amigo controverso de Mersault o convida para jantar e, Mersault aceita apenas por ter fome e isso evitar que ele cozinhe, não por amizade ou outro sentimento.

A parte central do Romance está a afirmação de Camus: “Em nossa sociedade, qualquer homem que não chore no funeral de sua mãe corre o risco de ser condenado à morte”. Em outras palavras, Mersault é culpado não apenas por matar alguém, mas também porque não chorou no funeral de sua mãe. Esse é o tipo de homem que ele é. Emocionalmente indisponível.

Aujourd’hui, maman est morte.

A obra inicia com Mersault recebendo a noticia que de que sua mãe morreu de velhice. Ele tira folga do trabalho para estar em seu funeral, mas, ao contrário da expectativa da sociedade, ele não chora ou mostra tristeza. Age como se nada tivesse acontecido. Bebe, fuma e tem relações sexuais com a namorada. Ele até ajuda seu vizinho, Raymond, a se vingar atacando uma mulher árabe que pode tê-lo traído. Além disso, quando Raymond é preso por agredir a moça, Mersault ajuda seu amigo, repetindo as palavras de Raymond para a polícia de que a mulher foi infiel. Mersault não faz perguntas e não pensa se suas ações podem machucar alguém. Ele simplesmente faz o que sente no momento. Em outras palavras, ele não sente culpa pelo que aconteceu no passado, e é importante dizer que Mersault não é um homem necessariamente bom, como no caso, ele sabe que as ações violentas de Raymond contra uma mulher são condenáveis, mas o ajuda mesmo assim pois “whatever” e, ainda auxilia seu amigo sair impune de seu crime de violência contra uma mulher.

Para ter uma noção da indiferença de Mersault, quando seu chefe pergunta se ele quer trabalhar na filial da empresa em Paris, ele responde: “tanto faz”. Quando sua namorada Marie pergunta se eles deveriam se casar, sua resposta é a mesma: “tanto faz, contanto que isso te faça feliz”. Ele não se importa de qualquer maneira. Sua atitude indiferente à vida é uma verdadeira bomba-relógio, então Camus intensifica ainda mais. Um dia, na praia, o amigo de Mersault, Raymond, é atacado pelo irmão da mulher árabe que ele havia agredido, o homem está armado com uma faca, Raymond pega sua arma para atirar, mas Mersault pega a arma dele para impedir o assassinato. Por acaso, nenhum dos personagens árabes é nomeado no romance. Isso pode ser uma crítica de Camus a condição das pessoas árabes que vivem na frança, que não são relevantes a ponnto de ter uma identidade, mas isso não posso afirmar. Mais tarde naquele dia, Mersault, enquanto caminha pela praia, encontra o mesmo homem árabe com ainda armado com afaca. Mersault que ainda carrega a pistola de Raymond, atira no homem árabe, não uma vez, mas cinco vezes. por isso é preso e colocado na prisão. Mersault confessa prontamente o assassinato, Mas por que você o matou? questionam os homens da lei, e ua única explicação é que o sol estava muito quente e brilhante, e sua cabeça doia, então ele agiu instintivamente e de alguma forma reflexivamente. Isso é tudo.

The Stranger (Italiano: Lo straniero) adaptação da obra por Luchino Visconti

Enquanto Mersault está preso, os dias se transformam em semanas, depois em meses e anos, enquanto espera por seu julgamento. No tribunal, o foco não está tanto no assassinato de um homem árabe, mas mais na incapacidade de Mersault de chorar no funeral de sua mãe. Nesse ponto Camus possivelmente mostra a disparidade da vida na Argélia, um homem árabe real é assassinado, mas o promotor está mais focado em Mersault por não chorar no funeral de sua mãe europeia, desse modo, pode ser que Camus quisesse expor o sistema legal não de um ponto de vista racial, mas de um ponto de vista existencial de que se alguém não sabe como chorar, ou tem inabilidade de demonstrar seus sentimentos. Se as mulheres podem chorar, por que os homens não podem? Essa é a principal pergunta que o romance coloca.

Por não ter chorado, o promotor de justiça o retrata Mersault como um monstro sem remorso. Ele é condenado à morte, chocando ele e seu advogado, pois toda sua defesa foi baseada na legitima defesa do ASSASSINATO de um homem, e não se não ter veritido lágrimas no funeral de sua mãe, enquanto espera pela execução, Mersault se recusa a ver um padre porque não acredita em Deus e não vê nenhuma saída física para uma morte certa. Como Dostoiévski disse em seu romance “O Idiota”, na natureza, quando você enfrenta a morte, seja um animal selvagem que o ataca ou seu inimigo na guerra, sempre há alguma esperança de sobrevivência porque você pode lutar ou se esforçar para viver, mas quando o estado o condena à morte, não há esperança, nenhuma chance de escapar. A morte é a única certeza. Mersault passa dias buscando entender seu destino. Finalmente, ele chega a uma conclusão incrível: Mersault diz ao padre que podemos escapar de tudo, mas ninguém pode escapar da morte. Não importa como você morre, todos nós morremos. Este destino está costurado em nós desde o dia em que nascemos. Esta conclusão simples, mas profunda, permite que Mersault aceite seu destino. Não só isso, o mero ato de se expressar, ou gritar essas palavras para o padre, também liberta Mersault, em uma espécie de terapia de fala freudiana ou confissão na igreja. Ele reflete, talvez pela primeira vez em sua vida. Ele finalmente desperta para a condição humana. Ele era um animal, mas agora percebe a morte como uma experiência humana. Mersault finalmente está feliz.

Não só isso, ele está ansioso por sua execução para ouvir o ódio da multidão, para que não esteja sozinho ao morrer. Em “O Estrangeiro”, Albert Camus levanta duas questões importantes: nossa consciência humana da morte e o sentimento de culpa. O romance tem três mortes, uma natural, um assassinato ilegal e uma execução legal. A primeira morte, a da mãe de Mersault, desperta pouco nele. Ele também é indiferente à segunda morte, que ele causa. Mas quando se trata de sua própria execução, ele finalmente acorda e fica completamente lúcido. Evolutivamente falando, os humanos são talvez a única espécie ciente de sua própria morte, o que intensifica nosso senso de consciência. Como Martin Heidegger disse, a consciência da morte torna a vida humana autêntica e significativa. Albert Camus ecoa isso argumentando que a morte traz clareza às nossas vidas. Torna-nos mais conscientes para viver uma vida mais plena.

A segunda questão no romance é a culpa. Mersault está em julgamento pelo assassinato, mas o foco é principalmente nele por não chorar no funeral de sua mãe. Camus, talvez, assim como seu posterior compatriota Michel Foucault, estava apontando que a modernidade substituiu a punição física pela punição psicológica. O mundo pré-moderno geralmente punia criminosos por meio de provações físicas, enquanto o sistema legal moderno parou em grande parte com a punição física e, em vez disso, introduziu a punição psicológica, garantindo que alguém sinta culpa. Isso se deve talvez ao homem moderno ser muito racional. Mersault é um homem honesto que confessa o assassinato. Mas sua confissão não é suficiente, então a acusação tenta quebrar a indiferença de Mersault, culpando sua indiferença, fazendo-o sentir culpa.

Desse modo, por fim, a ideia da obra é que o crime de ser diferente, ou melhor, ser indiferente é mais condenável que o assassinato em si, pois se Mersault se encaixasse nos padrões comuns, o assassinato do homem árabe seria a menor de suas condenações, mas, ao ser um estrangeiro a sua própria sociedade, ser algo estranho, diferente, Mersault é condenado e punido, pois você pode até ser um assassino, mas não pode ser um estrangeiro, um diferente.

Quem tiver interesse em assistir a adaptação para cinema do diretor Luchino Visconti, tem no youtube, com legendas em inglês:

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Written by Kruppa

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