O paradoxo de existir, por Fernando Pessoa.

Kruppa
5 min readFeb 25, 2023

Eu não sei como me sentir, pensar ou amar. Eu sou um personagem em um romance ainda não escrito, flutuando no ar e desfeito antes mesmo de existir, entre os sonhos de alguém que nunca conseguiu dar vida a mim. Estou sempre pensando, sempre sentindo, mas meus pensamentos não têm razão, minhas emoções não têm sentimento. Estou caindo por uma armadilha, através de um espaço infinito e sem direção, em uma queda vazia. Minha alma é um redemoinho negro, uma grande loucura girando em torno de um vácuo, o redemoinho de um vasto oceano ao redor de um buraco no vazio, e nas águas, mais como redemoinhos do que águas, flutuam imagens de tudo o que já vi ou ouvi no mundo: casas, rostos, livros, caixas, trechos de música e fragmentos de vozes, todos capturados em um redemoinho sinistro e sem fundo. E eu, eu mesmo, sou o centro que só existe porque a geometria do abismo exige isso; eu sou o nada ao redor do qual tudo isso gira, eu existo para que possa girar, eu sou um centro que só existe porque todo círculo tem um. Eu, eu mesmo, sou o poço no qual as paredes caíram para deixar apenas uma substância viscosa. Eu sou o centro de tudo, cercado pelo grande nada.

Fernando Pessoa — Livro do Desassossego (adaptado)

Um privilégio recente que tive em minha vida foi ganhar de presente um Kindle, um produto tão simples, que tantas pessoas tem, porém nunca obtive um por ser um gasto que sempre adiava, e desde que saí do curso de Letras na UFMS acabei diminuindo drasticamente o meu contato com livros, tentei andar com um ou outro na mochila para que, em momentos de descanso pudesse folhear um pouco, porém a realidade da vida adulta sempre é implacável, e se dedicar a leitura no meio da correria acaba não sendo o que a gente necessariamente esperava, e o livro, aquele bloco de papel preso por uma capa acaba não resistindo muito bem a mochila com líquidos, canetas, notebook, as quedas, aos apertados em um ônibus urbano lotado no horário do rush, estraguei uma edição linda do “Rei de Amarelo” do Chambers que ganhei de um amigo, algum tempo depois acabei danificando a minha edição do “O livro de Areia” do Borges, foi meu limite, não estragaria mais livros.

Porém,a facilidade de um Kindle me surpreendeu, e pude, mesmo que timidamente, retornar as minhas leituras, por mais que concursos públicos iminentes tomem meu tempo, entre estudar como se remove um cérebro para a prova da SPTC pude ler algumas coisas, do “No Longer Human” do Osamu Dazai, que pretendo falar em um futuro próximo, a outras coisas, mas algo que surpreendeu foi eu nunca ter dado atenção ao “Livro do Desassossego” de Fernando Pessoa.

Capa da Edição “The Book of Disquiet”, versão gringa da Obra.

O Livro do Desassossego é uma obra literária escrita pelo poeta português Fernando Pessoa. O livro é composto por uma série de fragmentos, ensaios e reflexões, que foram escritos ao longo de vários anos e reunidos postumamente em um único volume, esses documentos ficaram décadas fechados em um caixote de madeira, abandonado no tempo, sua publicação é moderna de 1987, 47 anos após a morte de Pessoa. A obra não tem uma ordem lógica de leitura, você pode iniciar pelo final, ou pela metade, tanto faz.

O narrador do livro é o heterônimo Bernardo Soares, um escriturário solitário que vive em Lisboa. Soares é um observador atento do mundo ao seu redor e das complexidades da vida moderna. Ele reflete sobre a condição humana e a natureza da existência, muitas vezes questionando a própria realidade de sua existência.

A obra traz as reflexões e devaneios de Pessoa — sobre a realidade e o sonho, sobre o tédio e a identidade, sobre a absurdez do ser e a futilidade do fazer, sobre a complexidade e simplicidade simultâneas da vida, sobre a contradição e o paradoxo no cerne de tudo.

O livro é composto por uma coleção de vinhetas fragmentadas escritas em um estilo que vai de diário a poesia. A obra “O Livro do Desassossego” não é exatamente um livro de não ficção de um autor anônimo, mas também não é realmente um romance sobre um personagem ou história fictícia. Ele está em algum lugar intermediário. Por causa disso, é frequentemente descrito como a autobiografia mais estranha, confusa já escrita. Pessoa mesmo descreveu como uma autobiografia sem fatos, ou uma autobiografia de alguém que nunca existiu, algo semelhante a uma biografia que não é uma biografia. A estrutura e o estilo únicos do livro são, de muitas maneiras, uma sustento essencial de apoio dos temas do livro. O uso de heterônimos parece reforçar um tema filosófico chave ao longo do trabalho: a natureza fragmentada e ilusória do eu. Com incrível precisão e pungência que parece catártica de ler, ao longo do livro, Pessoa frequentemente descreve a alienação inerente, desorientação e solidão associadas a ser uma pessoa. Para Pessoa, o autoentendimento, ou talvez a tentativa de entender o eu, é uma queda livre em um buraco de coelho com um pouso que o mata. E a impossibilidade de entender e comunicar as próprias experiências internas enquanto nesta queda livre empresta-se a uma vida inteira de inquietação e desorientação.

Outro ponto importante do livro, se o que já fora discutido anteriormente não for o suficiente, talvez o aspecto mais confuso da história de O Livro do Desassossego seja que ele contém passagens que profetizam seu destino. Nele, Pessoa escreveu:

Às vezes me ocorre, com tristeza e deleite, que se um dia (em um futuro do qual não farei parte) as frases que escrevo forem lidas e admiradas, então terei finalmente meus próprios parentes, pessoas que ‘me entendem’, minha verdadeira família na qual nascer e ser amado. Mas longe de nascer nela, já terei morrido há muito tempo. Serei compreendido apenas em efígie, quando o afeto já não pode mais compensar a indiferença que foi a sina do homem morto em vida. Talvez um dia eles entendam que eu cumpri, como ninguém mais, meu dever instintivo de interpretar uma parte do nosso século; e quando entenderem isso, escreverão que em minha época fui incompreendido, que as pessoas ao meu redor eram infelizmente indiferentes e insensíveis ao meu trabalho, e que foi uma pena que isso tenha acontecido comigo. E quem escrever isso não entenderá meu equivalente literário naquele futuro, assim como meus contemporâneos não me entendem. Porque os homens só aprendem o que seria útil para seus bisavós. O caminho certo de viver é algo que só podemos ensinar aos mortos.

E, é claro, tudo isso se tornou realidade. Está acontecendo agora mesmo com estas palavras. Atualmente, estamos participando da fortuna predita por Pessoa há um século.

Só podemos nos perguntar se isso foi um plano habilmente construído por uma mente criativa genial? Foi uma questão de sorte? Foi ambos? Ou foi algo mais? Seja qual for o caso, a história de O Livro do Desassossego parece ter se tornado quase parte de sua criação artística. Ela evoca uma qualidade quase mística e espiritual. Parece um livro religioso para ateus. Um manual para niilistas. Pode e provavelmente vai devastar a maioria dos que o lerem. Mas também ajudará a confortar e lembrar que não se deve levar a si mesmo ou à vida muito a sério. Às vezes, a exposição à doença faz parte do tratamento.

Por fim, creio que essa é uma recomendação de leitura, e é basicamente um roubo, custa menos que um cigarro solto em uma barraca suspeita de bloquinho de carnaval.

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Written by Kruppa

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